Análise
O Auto da Compadecida 2: um fracasso desnecessário
O filme não tem a mínima graça e tenta repetir o primeiro, mas de forma piorada e cansativa.
Por Tadeu Gomes
05/01/2025 às 20:08 | Atualizado em 05/01/2025 às 21:16
Sem dúvidas o filme “O Auto da Compadecida 2” foi a estreia mais aguardada no Brasil em 2024. Relembrar personagens marcantes como João Grilo (interpretado por Matheus Nachtergaele) e Chicó (por Selton Melo) era um desejo de todos que assistiram ao primeiro, que é considerado por muitos como o melhor longa metragem brasileiro de todos os tempos. Essa expectativa, no entanto, foi quebrada mesmo antes do lançamento. Nos trailers divulgados pela produtora já dava para notar que o filme seria um fracasso. Apesar disso, fãs da história, como eu, persistiram em ver o novo enredo, que, sem exagero, é o pior já feito nas telas brasileiras.
A história é desconexa, não tem começo, meio e fim. É horrível. Os personagens se perderam. É aquele tipo de filme que você fica aguardando acontecer algo, e não acontece. Selton Melo parece não encontrar o personagem. A atuação dele está terrível. Fica forçando um sotaque sertanejo esdrúxulo. João Grilo segue o mesmo exemplo.
Não posso dizer que eu me decepcionei com essa obra porque era justamente o que eu estava esperando dela. Ainda que eu tivesse um sonho distante de que essa poderia ser uma sequência minimamente justificável, mesmo que não fosse à altura do original. Mas aqui conseguiram se superar no quesito mediocridade, para mim.
A trama por aqui é basicamente inexistente. Se a narrativa original era formada por causos relativamente isolados, toda a narrativa era unida num arco central maior e que percorria toda a obra. Tudo se justificava e se mostrava útil no desenrolar final da história. Aqui existem apenas sequências cômicas com um fiapo de história e sem muita justificativa. Para começar é que parece que transportaram nossa trama para uma outra realidade, mas discutirei depois. Nessa nova realidade – porque na minha cabeça só pode ser isso – encontramos nosso velho conhecido Chicó que vive de suas poesias, recontando a morte e ressureição de João Grilo. Grilo esse que sumiu no mundo, mas que curiosamente voltou para a cidade, agora dominada por um tal de Coronel Ernani, que raciona a água da população.
Com o domínio do Coronel, João Grilo, reconhecido pelo povo como santo, tenta mudar a situação, arquitetando um plano ousado de colocar os dois personagens influentes da cidade um contra o outro na disputa política e ganhar vantagem com isso tudo. A partir daí, a história meio que se perde em acontecimentos isolados e que pouco se auto justificam no contexto geral.
É impressionante até hoje a maneira como a direção de arte recriou uma Taperoá muito fidedigna a uma localidade nordestina da década de 20 na produção original de 1999. E é ainda mais impressionante a ideia dos realizadores dessa obra recente de fazer todo o filme em cenários falsos compostos por CGI. Chega até a ser um desrespeito. E a direção não cansa de nos mostrar aquele ambiente falso com planos gerais e vistas da paisagem irreal. Toda vez que uma cena dessa começava eu ficava ainda mais indignado. Como não tiveram o cuidado de se preocupar com isso.
Não é como se tivessem feito às pressas. Ninguém pediu a realização de uma sequência e ninguém nem sequer sabia que essa ideia poderia vir a ser realizada. Mas como foi, poderiam ter mais zelo pela memória do material original que, aliás, eu vou ser obrigado a comparar aqui o tempo todo. Se as histórias alucinadas de Chicó eram ilustradas por uma técnica de animação própria, isso se justificava por se tratar das mentiras inventadas pelo personagem, mas isso valer para todo o universo real desse filme aqui destoa bastante. De um modo em que até as sequências fictícias narradas por Chicó perdem sua profundidade e até sua beleza únicas.
É necessário fazer comparações porque o próprio filme o faz. Em muitos momentos o filme copia literalmente cenas inteiras da minissérie original. Uma frase marcante ou um bordão são coisas que, se utilizadas bem, poderiam mexer com nossa nostalgia e até tornar o longa mais especial, mas aqui simplesmente refilmaram – de um jeito pior, porque perdeu a originalidade – cenas que já assistimos antes. E o pior de tudo é que tem cena repetida mais de uma vez. É impressionante como faltou criatividade aqui. Coisa que é uma das marcas mais importantes do material de origem e de toda a mitologia da – infelizmente – agora, franquia.
Como mencionado, falta criatividade. Parece que gravaram o filme às pressas e com os primeiros rascunhos de roteiro que escreveram. O que mais incomoda é que os realizadores não são nem de longe amadores. Eles já se mostraram bastante competentes. Guel Arraes dirigiu magistralmente o original e ainda nos trouxe “Lisbela e o Prisioneiro”, que para mim é um sucessor espiritual muito mais a altura de “O Auto da Compadecida” do que esse filme que temos aqui. Não sei exatamente o que aconteceu, se foram as produtoras, foi o dinheiro que falou mais alto ou o que. Mas tudo aqui parece bem amador ou, ao menos, descuidado.
Uma das poucas coisas realmente carismáticas, apesar das atuações toscas, são os personagens. E isso só ocorre porque nós já temos um grande apreço por eles. Chicó e João Grilo estão presos numa trama que não consegue extrair o máximo do que um dia eles já nos proporcionaram. Já os outros personagens, que também já conhecemos, estão aqui apenas como ferramenta do roteiro para criar causos bem artificiais. E o que falar dos novos personagens? Não chegam nem perto do carisma da trupe original. E eu não sei o que houve, se alguém sentiu falta de personagens cariocas e tiveram que fazer uma cota para aparecer um aqui, porque não se explica a participação de uma pessoa aqui. O que foi aquilo? Piadas forçadas, sequências sem vida. Muito tempo jogado fora em desenvolvimentos trôpegos e chatos.
A comédia é bem oscilante. Os personagens já conhecidos são os que têm mais facilidade para nos alegrar novamente, mas, mesmo assim, os textos são fracos e algumas sequências têm humor bem forçado, algo que nem de perto acontecia antes. Os bons momentos cômicos estão entrelaçados a outros bem pouco inspirados.
A trilha sonora é basicamente uma tentativa de atualização da original. Encheram o filme de músicas, algo que não tinha no primeiro, o que soou estranho. O universo é puro breu. A fotografia é que sofre para criar os cenários com paisagens falsas. Quando se trata de ambientes internos, até vai bem, mas até nos figurinos eu não senti um apreço tão grande quanto já vimos antes.
Os realizadores tentam pincelar algumas críticas sociais, mas são tão insignificantes que são esquecidas até mesmo pelo próprio roteiro. Se o coronelismo, a política do voto de cabresto ou a influência social das mídias de massa poderiam ser abordadas mais a fundo aqui, assim como o problema do analfabetismo e da seca nordestina, o filme finge que nem sequer tocou nesses assuntos e foge para o que já não estava muito bom, o drama interno dos personagens. Chicó capenga para carregar o fardo de protagonizar alguns dramas singelos, enquanto João Grilo tenta fazer graça com piadas repetidas. Se ele consegue, é porque realmente o carisma fala mais alto, mas infelizmente não é o suficiente para garantir mais um filme inteiro sem alma e sem criatividade na trama.
A história é tão “repeteca” da original, que a não comparação é impossível. Além de cenas repetidas, o filme ainda consegue se autorreferenciar e, com toda certeza, não de forma positiva. Os acontecimentos, além de não serem marcantes, ainda pouco influenciam realmente para o desenrolar da trama, da história de vida dos personagens ou do que quer que seja.
Assim, a história acaba como se ela nunca tivesse acontecido. O senso de progressão é inexistente. A realidade pouco ou nada é alterada pelo que vemos em tela. É uma história que anda, anda e acaba terminando no mesmo lugar que começou. É como se tivéssemos caminhando em círculos. Isso dá uma sensação de desânimo enorme.
Até mesmo as atuações que tinham um ar teatral carismático parecem que aqui ficaram meio artificiais. O texto é burocrático e perdeu certa originalidade, as falas não são mais orgânicas como eram. Na verdade, nem sei explicar muito bem, mas nem mesmo Matheus Nachtergaele conseguiu reviver o já tantas vezes ressuscitado João Grilo. Quanto a Chicó, acho que vem dele o maior sucesso cômico desse filme. Porém, o personagem mudou radicalmente de personalidade. Não é mais aquele Chicó frouxo, que vive na sombra do amarelo. Aqui ele parece que se transformou no "Leleu", personagem interpretado pelo próprio Selton em "Lisbela e o Prisioneiro", em que ele é um "malandro" conquistador.
A Rosinha, que era uma mulher doce e meiga, transformou-se, do nada, em uma caminhoneira que fugiu da cidade porque o pai, Major Antônio Morais, havia ameaçado ela e Chicó.
O mais terrível, de tudo, foi ver João Grilo morrer e ir novamente para o purgatório fazer as mesmas piadas, porém, dessa vez, num extremo ridiculo. Por incrível que pareça, ele recitou a famosa poesia do "Vala, minha Nossa Senhora, mãe Deus de Nazaré...".
O filme parece que tem mais de 4 horas de duração. É cansativo. Essa obra não consegue justificar sua existência e se nós temos algum apreço ainda por ela, ele é praticamente todo derivado da nossa boa relação com os seus personagens protagonistas que é totalmente proveniente da obra original. Como o próprio diabo diz aqui: “Eu já vi esse filme antes”. O mais interessante de tudo é que os realizadores tem conhecimento da mediocridade da obra e fazem até piada com isso. Mesmo assim, parece que ninguém se importou em honrar a magistral memória que havia sido construída numa das obras que para mim são uma das melhores coisas da cultura brasileira de todos os tempos. (Por Gabriel Santana)
Para quem deseja ir ao cinema para ver, aconselho a ficar apenas com a memória do primeiro, a não ser que queira se frustrar com esse fracasso desnecessário.
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